“Not Your Fault” é uma compilação beneficente que se destina a recolher fundos para a APAV | Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, através das vendas on-line de dezassete composições de Música Contemporânea e Música Livre.

“Not Your Fault” is a charity compilation of seventeen Contemporary and Free music composers from Portugal, that aims to collect funds for APAV - Portuguese Association for Victim Support.


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Serás tu sozinha como foi a tua mãe, irmã, companheira, amiga. Faltará água e sabonete para te lavares e cheirarás a ti mesma e à fome que te acompanha. Em frente ao espelho, suspirarás enquanto entranças mechas escorridas de cabelo. Reaprenderás a dormir noutro horário. Sairás de casas distantes pelo azul gradiente, como fazem os caçadores noturnos e as onças-pardas. Entre passos, o fôlego preso, o silêncio, o ardor na língua. Na rua, o ar será severo. O tráfego, as bocas, os cachimbos, os olhos distorcidos, o bolorido verde. É certo que ouças dentro da tua cabeça a voz do macho sórdido – mais vale minha agora, do que dos outros o resto da vida, sua puta. Não chorarás. E vem-te o cheiro agonizante dos estofos do carro e da transpiração ácida do homem que te raptou naquele dia. Tudo a misturar-se com o presente. Relembras as mulheres que passaram pela tua vida e guardas-te na tua filha menor, nova luz límpida, porque fazê-lo é reconhecer-te. E não chorarás.

Tens o coração perto da boca e uma raiva a espumar-se, formando bolhas transparentes nos poros da pele. Um dia, expulsarás a fúria inteira, criatura infetada a viver dentro de ti desde os treze. É dela que vem a memória da tua força. De sangrar. Não esta, não mais. E em cada noite, matarás somente flores cinzentas e acrescentarás aos jardins e passeios públicos:

vou eu ser uma orquídea caudalosa e ter a pele branca
estou grávida. quero abortar.
nascer sem sangue
deixa-me olhar para ti
desdobrar-me em pétalas
os teus olhos parecem ameixas negras
cantar no linguajar do mel
disse-me que não eram horas para uma menina andar na rua e a seguir bateu-me

Mulher prepara a garganta para o teu desaguar de estrelas. Cá em baixo, esperamos pela convulsão. Uma, é pouco. Duas, uma hipótese. Todas, uma revolução.

por teresa melo
15.11.2023